A
Escola às Escuras – Parte I – Prof. Julio Groppa Aquino
Essa
entrevista do Professor Julio Groppa Aquino, à Revista Carta Capital, publicada em 2005 continua atualizadíssima, o
que nos mostra que, em se tratando de Educação, as transformações não ocorrem na velocidade
que gostaríamos, muito ao contrário disso, ainda mantém uma estrutura arcaica
no seu modelo de administração e também de concepção teórica.
O
texto merece a leitura e reflexão. Nele o professor questiona alguns mitos e
estereótipos criados sobre a Educação e nos aponta caminhos para superá-los.
Como a entrevista
é grande vamos postá-la no blog por etapas. Os grifos são nossos...
Leiam, reflitam e
comentem!
A ESCOLA ÀS ESCURAS
Edição
364 - Revista Carta Capital
por Flavio Lobo
É preciso ter coragem
para desmascarar esse estado lamentável das coisas na educação, seja
particular, seja pública.” O
educador Julio Roberto Groppa Aquino não fica apenas na convocação: sua análise
sobre a escola brasileira é
demolidora. Governo, empresários do setor, pais, professores, mídia
especializada… Exceto pelos maiores interessados, e prejudicados, as crianças e
adolescentes, nenhum grupo envolvido no processo é poupado. Aos 42
anos, Groppa assegura que, desde que começou a trabalhar com educação, há duas
décadas, só viu a situação piorar.
Professor da Faculdade de Educação da Universidade de São
Paulo, com doutorado feito na própria USP e pós-doutorado pela Universidade de
Barcelona, Groppa é autor de quatro livros sobre o cotidiano escolar e co-autor de vários outros,
entre os quais Em Defesa da Escola (Papirus, 2004). Além da docência na
universidade, lecionou no ensino básico e hoje assina a coluna Quadro Negro, na
revista Educação.
Nesta entrevista, Julio Groppa expõe o que considera a
escuridão reinante no quadro escolar
brasileiro. E não se furta a nomear alguns dos protagonistas do “desastre”
educacional do País, resultante da manutenção
de “mitos”, de palavras de ordem vazias, descaso, farsa e abandono.
CartaCapital: Quais são os maiores mitos em torno da escola brasileira?
Julio Groppa: O
maior deles é o de que a educação seria o grande instrumento de ascensão social.
Acredita-se nisso há séculos. A ideia de que a educação faz a diferença é a
base do pensamento moderno. A ciência, a tecnologia, o progresso, tudo isso
tem a ver com a ideia de educação como pilar. Tanto a esquerda quanto a direita
repetem que a educação dos pobres melhora a vida deles próprios e do País.
Parece-me um mito já de largada, porque a gente não vê isso acontecer
concretamente aqui. O grande potencial de transformação social da educação, seu
papel fundamental para uma melhor distribuição de oportunidades e renda, que
ela desempenha em outros lugares, no Brasil não se realiza. A escola brasileira é cuspida e
escarrada a realidade brasileira, com todas as suas injustiças. E não se trata
de ela reproduzir a realidade brasileira: ela é a realidade brasileira. Há um mito de que existem ilhas escolares que são o luxo, associadas
às escolas privadas, e, em volta,
um grande aterro sanitário público onde depositamos as crianças pobres –
porque, a rigor, as escolas se
transformaram em lugares onde jogamos as crianças e depois de oito anos fazemos
testes para ver no que deu. Só poderia mesmo dar nesse desastre que é a
educação pública brasileira.
CartaCapital: Mas a ideia de que existem oásis de
“luxo” educacional faz sentido?
Julio Groppa: Não. As escolas privadas
transformaram-se em lugares de mero adestramento intelectual. Não há
uma vírgula de diferença entre escolas
de proposta x ou y. Em geral, todo o trabalho sustenta-se na ideia de
transposição da informação enciclopédica que cai no vestibular. As escolas privadas
tornaram-se treinadoras de prestadores de vestibular. E a expressão máxima disso são os
cursinhos, essa excrescência da educação brasileira, cujos profissionais gozam,
indevidamente, da fama de serem os melhores professores. Os cursinhos são tão-somente
uma caricatura da escola privada. Ensinam o quê? A passar em
vestibulares, que cada vez mais vão se sofisticando conforme o objetivo de
excluir a grande massa da universidade pública.
Carta Capital: Em termos de conteúdo não há diferenças?
Julio Groppa: As escolas
são lugares abandonados do ponto de vista intelectual. Nisso a escola privada e a escola pública não têm diferença
significativa. A estratégia do abandono dos alunos da escola pública tem a sua contrapartida na
teatralização da escola privada. Em ambas, pouco de
inteligente se constrói. Dialogamos muito pouco com a cultura acumulada, sempre
recomeçamos do zero. Uma professora espanhola que esteve aqui fez uma síntese
da diferença entre a cultura escolar
brasileira e a européia. Ela disse que, ao fazer uma comemoração, eles
escolheriam o lugar mais antigo, de maior significado histórico. Aqui,
escolheríamos o mais novo, o da moda. Nada tem lastro, continuidade. E é a
educação que deveria promover esse lastro. É preciso pensar a educação com
maturidade. Ao contrário disso que está aí: por um lado, um discurso
espontaneísta, desarticulado e infantilizado. Do outro, ações “pragmáticas”,
norteadas pela ideia de que educar bem é assegurar vaga na universidade. Meus
alunos chegam à USP e não sabem escrever, raramente leem. Seriam reprovados num
ditado.
Carta Capiotal: Para mudar isso, não seria preciso exigir o
cumprimento de metas básicas, como a alfabetização dos alunos até uma certa
idade?
Julio Groppa: Sim, precisamos de pactos éticos, políticos,
civis e profissionais. O que você chama de metas para mim são princípios que
têm de ser comuns aos educadores, antes de tudo.
Vou dar um exemplo. No início da gestão do PT na prefeitura de São Paulo (no
governo de Marta Suplicy), eu participei de um levantamento. As 900 escolas municipais de ensino
fundamental foram divididas em 13 regiões e eu fui o responsável por uma delas.
Conversamos com alunos, professores e funcionários para saber o que estava
acontecendo e, em seguida, propor ações. Qual foi o problema que se impôs antes
da abordagem de questões pedagógicas estruturais? O absenteísmo docente. Isso
precisa ser dito: não conheço uma única escola pública que conte, em apenas um dia do
ano letivo, com todos os seus profissionais presentes. Com esse diagnóstico,
fizemos uma reunião com todas as escolas
e eu propus um pacto de cem dias sem faltas. Fui vaiado por praticamente todos
que lá estavam. Veja que eu estava defendendo um princípio. Os alunos têm o
direito de ser atendidos, e da melhor maneira possível. Se os mesmos índices de
faltas acontecessem na saúde, os hospitais seriam incendiados. Este, aliás, é
outro engano: diz-se que a saúde e a educação do País vão mal. Mas não dá para
comparar. A saúde funciona infinitamente melhor do que a educação. Se médicos
ou enfermeiros faltam, a cobrança é mil vezes maior. É só um exemplo de um
princípio essencial, o do atendimento sistemático. Na rede pública de educação,
esse pacto nós já rompemos há muito tempo. Perdemos por WO.
- Esta entrevista continua num próximo post...