Continuação
da entrevista dada pelo professor Julio Groppa Aquino à Revista Carta Capital
(edição 364).
Postagem
anterior: 26/09/2014
CC: A
tragédia da criança que vai à escola e nem se alfabetiza direito deveria ser
vista como a do doente que morre na fila?
JG: É
isso. Ela morre na fila, de véspera. Mas ninguém se escandaliza com essa
aberração. Vamos criando um monte de justificativas para naturalizar esse
desastre. E a educação brasileira segue, impávida, “matando seus pacientes”.
CC: O que houve depois da vaia?
JG: Fomos depostos. Caiu o secretário, mudou tudo, zerou de novo. Um clássico do amadorismo reinante. A secretária seguinte nem sequer sabia que tinha sido realizado esse trabalho, que proporcionou um extenso diagnóstico da educação municipal. O governo do PT na prefeitura de São Paulo foi um exemplo de como a gente sempre começa do zero. Foram três secretários de Educação. Formalmente, quatro, mas um deles ficou uma semana no cargo. Isso não significa que ter um secretário só é sempre bom. Veja quem é o responsável pela educação hoje na cidade: um médico, cirurgião. O que podemos esperar de alguém que, suspeito eu, entende muito pouco de educação básica? (O atual secretário da Educação do município de São Paulo é José Aristodemo Pinotti.)
CC: Segundo levantamento citado no livro A Escola Vista por Dentro, de Simon Schwartzman e João Batista Oliveira, 77% dos professores do ensino fundamental público culpam o desinteresse dos alunos pela alta repetência. Essa é uma das teorias que o senhor mencionou?
JG: Claro. É como dizer que o problema da saúde são as doenças, e o da Justiça, os delitos. “Se fôssemos um povo menos criminoso, a Justiça seria melhor. Se fôssemos mais interessados em educação ou, em outras palavras, menos ignorantes, a educação seria melhor.” É a lógica dos mitos. E esse talvez seja o maior deles: o de responsabilizar o alunado. Não faz o mínimo sentido, mas está generalizado não só entre os profissionais da educação, como também na opinião pública, que ratifica esses clichês, esses abusos cometidos contra os jovens.
CC: E em relação às particulares, também não falta cobrança?
JG: As escolas privadas são a cara da elite brasileira. Fazem parte do seu “pacote existencial”: academia, shopping, condomínio fechado, escola privada. Elas vendem aquilo que a elite quer: uma farsa com fachada de excelência. O processo de desinstitucionalização escolar, que na escola pública assume a forma de deserção, na escola privada confirma-se como fraude pedagógica. Não há o mínimo de supervisão, de controle. O ensino particular é um Velho Oeste. Tem jurisdição própria e transparência zero. E não há debate algum sobre isso. A escola privada, no Brasil, está acima de qualquer suspeita, como se seus resultados fossem sempre ótimos. E a imprensa em geral só faz alimentar a mistificação, como o ranking das melhores escolas privadas feito pela Veja em 2001. Em meados deste ano, a Folha de S.Paulo publicou um caderno especial intitulado Colégios, em que mostra o cotidiano das escolas campeãs do vestibular. E o que lá se vê? Hiperconcorrência entre os alunos, “baias” individuais, avaliação frenética, vigilância digital, exclusão sistemática dos “mais fracos”. Um dos destaques é o Colégio Objetivo, que pertence ao “barão” do modelo escolar vigente, o senhor (João Carlos) Di Genio. Não dá para acreditar que essas “corporações” espalhem impunemente seus horrores pedagógicos e que a imprensa seja servil a isso tudo. É preciso ter coragem para desmascarar esse estado lamentável das coisas na educação, seja particular, seja pública.
CC: O que houve depois da vaia?
JG: Fomos depostos. Caiu o secretário, mudou tudo, zerou de novo. Um clássico do amadorismo reinante. A secretária seguinte nem sequer sabia que tinha sido realizado esse trabalho, que proporcionou um extenso diagnóstico da educação municipal. O governo do PT na prefeitura de São Paulo foi um exemplo de como a gente sempre começa do zero. Foram três secretários de Educação. Formalmente, quatro, mas um deles ficou uma semana no cargo. Isso não significa que ter um secretário só é sempre bom. Veja quem é o responsável pela educação hoje na cidade: um médico, cirurgião. O que podemos esperar de alguém que, suspeito eu, entende muito pouco de educação básica? (O atual secretário da Educação do município de São Paulo é José Aristodemo Pinotti.)
CC: Segundo levantamento citado no livro A Escola Vista por Dentro, de Simon Schwartzman e João Batista Oliveira, 77% dos professores do ensino fundamental público culpam o desinteresse dos alunos pela alta repetência. Essa é uma das teorias que o senhor mencionou?
JG: Claro. É como dizer que o problema da saúde são as doenças, e o da Justiça, os delitos. “Se fôssemos um povo menos criminoso, a Justiça seria melhor. Se fôssemos mais interessados em educação ou, em outras palavras, menos ignorantes, a educação seria melhor.” É a lógica dos mitos. E esse talvez seja o maior deles: o de responsabilizar o alunado. Não faz o mínimo sentido, mas está generalizado não só entre os profissionais da educação, como também na opinião pública, que ratifica esses clichês, esses abusos cometidos contra os jovens.
CC: E em relação às particulares, também não falta cobrança?
JG: As escolas privadas são a cara da elite brasileira. Fazem parte do seu “pacote existencial”: academia, shopping, condomínio fechado, escola privada. Elas vendem aquilo que a elite quer: uma farsa com fachada de excelência. O processo de desinstitucionalização escolar, que na escola pública assume a forma de deserção, na escola privada confirma-se como fraude pedagógica. Não há o mínimo de supervisão, de controle. O ensino particular é um Velho Oeste. Tem jurisdição própria e transparência zero. E não há debate algum sobre isso. A escola privada, no Brasil, está acima de qualquer suspeita, como se seus resultados fossem sempre ótimos. E a imprensa em geral só faz alimentar a mistificação, como o ranking das melhores escolas privadas feito pela Veja em 2001. Em meados deste ano, a Folha de S.Paulo publicou um caderno especial intitulado Colégios, em que mostra o cotidiano das escolas campeãs do vestibular. E o que lá se vê? Hiperconcorrência entre os alunos, “baias” individuais, avaliação frenética, vigilância digital, exclusão sistemática dos “mais fracos”. Um dos destaques é o Colégio Objetivo, que pertence ao “barão” do modelo escolar vigente, o senhor (João Carlos) Di Genio. Não dá para acreditar que essas “corporações” espalhem impunemente seus horrores pedagógicos e que a imprensa seja servil a isso tudo. É preciso ter coragem para desmascarar esse estado lamentável das coisas na educação, seja particular, seja pública.
CC: Como
a situação pode ser tão ruim se tanto se diz que a educação é cada vez mais
valorizada? Fala-se sem parar em “era do conhecimento”, “educação continuada”…
JG: Pois é. Estamos cercados desses repetidores midiáticos, como o Gilberto Dimenstein. Gente que prega o “aprender a aprender”, “aprender a fazer”, “aprender a ser” etc. Clichês que pouco significam quando confrontados com a prática escolar. A educação exige uma certa solidez clássica. E não me venham dizer que as novas gerações não estão interessadas nisso. Elas são a cara do que a gente oferece para elas. Damos alfafa e reclamamos da falta de massa crítica.
CC: Qual é o “alimento” que falta?
JG: O que é o mundo se não gerações contando histórias para as gerações subseqüentes? As histórias dos que nos precederam – aquilo que chamamos de conhecimento. Mas não queremos mais contar história alguma para as novas gerações e, pior, queremos que elas criem sua própria história. Isso é deserção, um crime educacional. As transformações que chamamos de história são respostas ao que foi feito pela geração anterior. Padecemos de uma amnésia cultural sem precedentes. Hoje importa ser “inovador”, “empreendedor”. É insuportável essa tolice empreendedorística que toma de assalto o País, a mídia, as escolas. A geração dos pais e professores, dos educadores, insiste em não abandonar o palco da juventude. Os mais novos têm de lutar muito com os “eternos jovens” por um lugarzinho nesse palco, que deveria ser seu. Há gente demais querendo ser “jovem”.
CC: Nelson Rodrigues clamava aos jovens: “Envelheçam!” Hoje a súplica vale para pais e professores?
JG: Sem dúvida. Se não, quem narrará as histórias que merecem ser recontadas adiante? Você não imagina o que é controlar uma manada de crianças ou adolescentes com os hormônios explodindo. Qual a moeda de troca? É preciso oferecer um pouco da serenidade do velho mundo. Isso os acalma e dá a possibilidade da liberdade diante da opressão da juventude. O educador lhes dá a oportunidade de envelhecer. Ganha em troca um pouco da vitalidade deles e, com ela, a possibilidade de sobrevida. Uma troca justa.
CC: Mas essa imaturidade que domina a educação não é coerente com uma sociedade conservadora como a brasileira? A “eterna juventude” e o renascer do zero não são formas de simular o novo sem sair do lugar?
JG: Exatamente. É a morte do espírito educativo, de seu poder de transformação. Praticamos uma espécie de educação self-service, ou prêt-à-porter, antagônica à idéia de educação como conservação do mundo. A Hannah Arendt defende o aspecto conservacionista da educação, muito distinto do conservadorismo. Desde que trabalho com educação, duas décadas já, só a vi piorar no Brasil. E vai seguir ladeira abaixo se não mudarmos a relação que temos com as novas gerações, hoje marcada por rivalização e descaso. Ao rejeitar o conservacionismo, a nossa prática educacional torna-se, na verdade, ultraconservadora.
CC: Apesar da realidade da educação brasileira, ouvimos e lemos autoridades e especialistas a desfiar boas e belas intenções. Não há muita “poesia” para pouca lição de casa?
JG: Na penúria em que nos encontramos, pode faltar pão, mas não o circo. Esse é o efeito principal da onda de auto-ajuda pedagógica que assola as escolas atualmente. Um dos campeões do palavrório é o atual secretário da Educação do Estado de São Paulo (Gabriel Chalita). E olha que as escolas estaduais paulistas estão em situação ainda pior que as do município. Outro “poeta” da educação é o Rubem Alves, autor bastante reconhecido entre os educadores e na mídia. Eles que me perdoem, mas eu considero essa atitude leviana, para dizer o mínimo. A situação é muito grave para que possamos arrancar aplausos fáceis, fazer correr lágrimas comovidas de olhos mais sensíveis – ou míopes – e ter o sono dos justos.
JG: Pois é. Estamos cercados desses repetidores midiáticos, como o Gilberto Dimenstein. Gente que prega o “aprender a aprender”, “aprender a fazer”, “aprender a ser” etc. Clichês que pouco significam quando confrontados com a prática escolar. A educação exige uma certa solidez clássica. E não me venham dizer que as novas gerações não estão interessadas nisso. Elas são a cara do que a gente oferece para elas. Damos alfafa e reclamamos da falta de massa crítica.
CC: Qual é o “alimento” que falta?
JG: O que é o mundo se não gerações contando histórias para as gerações subseqüentes? As histórias dos que nos precederam – aquilo que chamamos de conhecimento. Mas não queremos mais contar história alguma para as novas gerações e, pior, queremos que elas criem sua própria história. Isso é deserção, um crime educacional. As transformações que chamamos de história são respostas ao que foi feito pela geração anterior. Padecemos de uma amnésia cultural sem precedentes. Hoje importa ser “inovador”, “empreendedor”. É insuportável essa tolice empreendedorística que toma de assalto o País, a mídia, as escolas. A geração dos pais e professores, dos educadores, insiste em não abandonar o palco da juventude. Os mais novos têm de lutar muito com os “eternos jovens” por um lugarzinho nesse palco, que deveria ser seu. Há gente demais querendo ser “jovem”.
CC: Nelson Rodrigues clamava aos jovens: “Envelheçam!” Hoje a súplica vale para pais e professores?
JG: Sem dúvida. Se não, quem narrará as histórias que merecem ser recontadas adiante? Você não imagina o que é controlar uma manada de crianças ou adolescentes com os hormônios explodindo. Qual a moeda de troca? É preciso oferecer um pouco da serenidade do velho mundo. Isso os acalma e dá a possibilidade da liberdade diante da opressão da juventude. O educador lhes dá a oportunidade de envelhecer. Ganha em troca um pouco da vitalidade deles e, com ela, a possibilidade de sobrevida. Uma troca justa.
CC: Mas essa imaturidade que domina a educação não é coerente com uma sociedade conservadora como a brasileira? A “eterna juventude” e o renascer do zero não são formas de simular o novo sem sair do lugar?
JG: Exatamente. É a morte do espírito educativo, de seu poder de transformação. Praticamos uma espécie de educação self-service, ou prêt-à-porter, antagônica à idéia de educação como conservação do mundo. A Hannah Arendt defende o aspecto conservacionista da educação, muito distinto do conservadorismo. Desde que trabalho com educação, duas décadas já, só a vi piorar no Brasil. E vai seguir ladeira abaixo se não mudarmos a relação que temos com as novas gerações, hoje marcada por rivalização e descaso. Ao rejeitar o conservacionismo, a nossa prática educacional torna-se, na verdade, ultraconservadora.
CC: Apesar da realidade da educação brasileira, ouvimos e lemos autoridades e especialistas a desfiar boas e belas intenções. Não há muita “poesia” para pouca lição de casa?
JG: Na penúria em que nos encontramos, pode faltar pão, mas não o circo. Esse é o efeito principal da onda de auto-ajuda pedagógica que assola as escolas atualmente. Um dos campeões do palavrório é o atual secretário da Educação do Estado de São Paulo (Gabriel Chalita). E olha que as escolas estaduais paulistas estão em situação ainda pior que as do município. Outro “poeta” da educação é o Rubem Alves, autor bastante reconhecido entre os educadores e na mídia. Eles que me perdoem, mas eu considero essa atitude leviana, para dizer o mínimo. A situação é muito grave para que possamos arrancar aplausos fáceis, fazer correr lágrimas comovidas de olhos mais sensíveis – ou míopes – e ter o sono dos justos.